Quando a portaria vira centro de distribuição: Os dilemas da expedição nos condomínios

27 out 2025

7 min. de leitura

Nos últimos anos, uma mudança silenciosa — mas profunda — transformou a rotina dos condomínios. De forma quase imperceptível, o espaço que antes recebia uma ou outra correspondência passou a operar como um verdadeiro hub logístico. Com a explosão do e-commerce, das compras por aplicativo e dos serviços por assinatura, a portaria assumiu mais um papel — novo e desafiador: o da expedição.

E mais: reforçou seu lugar como o coração da operação condominial — ponto de entrada, de registro, de acolhimento e agora também de circulação de bens.

Mas será que ela estava preparada para isso?
A nova realidade: um volume que o prédio não comporta

Antes, eram cartas, contas e uma ou outra encomenda esporádica. Hoje, é comum que um único apartamento receba diversas entregas por semana — às vezes por dia. Ração, vinho, remédio, comida congelada, itens frágeis, móveis desmontados, plantas, roupas da lavanderia… sem contar as caixas do morador que tem loja virtual e usa o prédio como ponto de estoque.

A transformação é clara: a rotina agora deve acompanhar o novo ritmo de um mundo digitalizado — e a estrutura física e o fluxo analógico ficaram para trás.

E quando a portaria tenta dar conta de tudo — sem infraestrutura, sem regras e com equipes sobrecarregadas —, o que era conveniência vira caos. O espaço fica pequeno, os funcionários ficam confusos, e os conflitos aparecem:

  • Quem pode receber?
  • O que pode ser armazenado?
  • Por quanto tempo?
  • E se ninguém retirar?
  • E se estragar?
  • E se sumir?

O que deveria facilitar a vida começa a gerar riscos, desgastes e insegurança.

O improviso virou regra — e isso tem custo

Há condomínios que, na tentativa de acompanhar a demanda, improvisam. Criam espaços para armários, colocam uma geladeira comunitária, distribuem caixas pelos corredores ou deixam as encomendas ao lado da guarita. Mas improviso tem limite.

Não é raro encontrar:

  • Porteiros sobrecarregados com funções que não são suas;
  • Equipamentos danificados por mau uso;
  • Itens perecíveis esquecidos e estragando;
  • Moradores irritados porque suas compras sumiram;
  • Entregadores entrando em horários proibidos;
  • E até conflitos judiciais envolvendo perdas, furtos ou danos.

Além disso, a improvisação pode comprometer a segurança do prédio. Com o tempo ocupado com entregas e objetos espalhados, o monitoramento de câmeras e acessos pode ser deixado de lado, por exemplo.

Mais do que um incômodo, o problema da expedição se tornou uma questão operacional e jurídica. E fingir que é passageiro só adia decisões importantes.

A fronteira entre o direito individual e o espaço coletivo

Uma das grandes tensões atuais nos condomínios é a linha tênue entre o que é conveniência pessoal e o que é responsabilidade coletiva. Afinal, todo mundo compra online — mas nem todo mundo aceita que o prédio funcione como extensão da sua casa ou do seu negócio.

E é nesse ponto que o comportamento do morador faz toda a diferença. Quando um condômino transforma a portaria em sede do seu e-commerce, exige que entregas sejam recebidas fora do horário, não retira encomendas por dias, ou trata o freezer coletivo como sua geladeira particular, ele está extrapolando. E comprometendo o uso dos espaços por todos os demais.

Da mesma forma, a ausência de regras claras sobre prazos de retirada, tipos de item aceitos ou condições de armazenamento abre espaço para o improviso — e para os abusos.

E mais: a porta aberta para os golpes

O crescimento da expedição também abriu caminho para novos riscos de segurança. Falsos entregadores com pacotes grandes que forçam a abertura da clausura. Presentes falsos com cobrança por cartão. Golpistas disfarçados de funcionários da saúde, agentes públicos, ou prestadores de serviço. Visitantes rendidos na entrada. Clonagem de controles. Buzinaços combinados para forçar a entrada de veículos parecidos com os dos moradores.

As brechas estão aí — e muitas vezes começam com um simples “Ah, é só uma encomenda”. Quando a rotina vira distração, a vulnerabilidade aumenta.

A tecnologia ajuda — mas precisa ser parte de uma política maior

Armários inteligentes com QR Code. Aplicativos que notificam a chegada da encomenda. Freezers e geladeiras para itens perecíveis. Controle digital de entrada de entregadores. Tudo isso já existe — e está ao alcance dos condomínios.

Mas tecnologia sem política é só enfeite.

De nada adianta o melhor sistema de armários se ninguém respeita o prazo de retirada. Ou se o morador exige que o porteiro se responsabilize por algo fora da norma. Ou se o síndico não define quem pode usar, quando e como. Por isso, a tecnologia só funciona quando vem acompanhada de regramento, comunicação clara e apoio coletivo.

Em São Paulo, por exemplo, já existem edifícios que adotaram políticas claras de cobrança por encomendas não retiradas após determinado prazo — geralmente 48 ou 72 horas. O valor da taxa é simbólico, mas funciona como um lembrete prático de que o espaço é coletivo e que a portaria não deve se transformar em depósito permanente.

Nem sempre o porteiro pode — ou deve — assumir essa tarefa

Tem condomínio que define bem: controlador de acesso não recebe encomenda. Outros tentam se virar com o que têm.

Essa distinção é importante. O controlador de acesso é responsável por autorizar ou negar entradas, manter registros e seguir estritamente os protocolos de segurança. Já o porteiro, dependendo do contrato e da convenção do condomínio, pode ter atribuições mais amplas — como recepção, triagem e entrega. Quando a função não está clara, surgem os conflitos: o funcionário se vê pressionado a “dar um jeitinho”, o morador cobra além do combinado e a segurança acaba ficando em segundo plano.

Caminhos possíveis — soluções reais

A boa notícia é que muitos condomínios já estão encontrando formas de equilibrar praticidade, segurança e organização. Algumas ideias incluem:

  • Definir um regulamento interno específico para a expedição;
  • Estabelecer horários para recebimento e retirada;
  • Diferenciar tipos de entrega (comida, item pessoal, carga frágil, mercadoria comercial);
  • Criar taxas para armazenamento prolongado;
  • Capacitar a equipe com protocolos claros de atendimento e triagem;
  • Investir em infraestrutura, quando possível, com base em análise da demanda.

Cada prédio tem sua realidade. Mas todos precisam de um plano e de consenso.

O que está em jogo: o bem-estar do coletivo

No fim das contas, a questão vai além dos pacotes e impacta todo o ambiente. Trata-se da qualidade da convivência. Do respeito ao espaço comum. Do cuidado com quem trabalha ali. Da valorização do imóvel e da segurança de todos.

A expedição, hoje, é parte do cotidiano do condomínio. Ignorar isso é como construir um prédio sem escada de emergência: pode funcionar por um tempo, até o primeiro incêndio.

Por isso, fica o convite: repense a política de expedição do seu prédio. Discuta. Atualize o regulamento. Traga o tema para a assembleia. E construa, junto com os outros moradores, uma solução que funcione para todos.

A portaria do futuro já começou.
A pergunta é: o seu condomínio vai acompanhar?

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